A relação da mãe com a sua criança inicia muito antes do parto. Temos a prova na ternura dos sorrisos e no cantarolar frequente ao longo da gestação, nos afagos da barriga e tentativas de sentir o bebé, no vasto rol de cuidados adicionais que a mãe implementa, entre os quais a adequação alimentar. E quando finalmente nasce, gritando a plenos pulmões, comunica aos pais a necessidade de ser atendida e cuidada. Pela impressão de fragilidade que evoca e pela incapacidade de especificar necessidades por outra via, qua não a do choro, deparam-se os pais com as dúvidas e inseguranças inéditas. Será que tem fome? Será que tem frio ou calor? Será que tem cólicas? E a fralda, estará suja? Tratamos, seguramente, de uma nova e vertiginosa aprendizagem para estes pais tão recentes. E as dinâmicas que se estabelecem, nesta nova modalidade de cuidadores, encerram potencial de risco para uma ansiedade de longo prazo. Desde o primeiro dia, a alimentação da criança assume particular preponderância e os padrões relacionais em torno deste aspeto começam a estruturar-se. À medida que a criança se desenvolve, tornando-se gradualmente mais interativa e envolvida nas dinâmicas familiares, as refeições constituem-se momentos privilegiados de convivência entre os diversos elementos. A refeição deve ser encarada como um momento relacional e prazeroso. A ansiedade parental incontida, com foco exagerado na alimentação, poderá exercer na criança um efeito de contágio da ansiedade, contribuindo para uma escalada emocional e comportamental mútua. Um cenário frequente é o da criança que recusa o alimento, gerando nos pais impotência e frustração incontidas, que tenderão a reforçar o comportamento de recusa. Este ciclo poderá predispor a manifestações comportamentais diversas, como o choro ou a birra, transformando-se a refeição num momento aversivo para todos. 

A tendência para o comportamento de recusa alimentar se prolongar ou recair ao longo do tempo estará muito ligada a padrões relacionais desadequados que se estabeleçam entre a criança e a família nos momentos de refeição. De facto, ainda que de forma subconsciente, a criança e o adolescente poderão integrar o comportamento desadequado como estratégia apelativa e maladaptativa para lidar com as adversidades. Assim, importa que não seja permitida à criança a perceção de controlo sobre o adulto através do seu comportamento alimentar. Para o casal, será da maior importância a implementação de rotinas que assegurem oportunidades de diálogo, momentos imprescindíveis para uma adequada contenção emocional a dois e plena dedicação à sua criança.

Determinadas conjunturas relacionais e comportamentais constituem, portanto, causa frequente de dificuldades alimentares na infância. A estas se acrescentam, por exemplo, a má evolução ponderal por razões físicas ou sociais, a seletividade alimentar, a recusa alimentar por motivações não relacionadas com a imagem corporal (quadros emocionais, história de trauma), quadros obsessivo-compulsivos (com rituais em torno da alimentação), efeitos adversos de tratamentos farmacológicos (metilfenidato, por exemplo).

O eclodir da puberdade tenderá, posteriormente, a suscitar preocupações e angústias centradas no corpo, que sofre profundas alterações numa questão de meses, impondo inevitáveis e consecutivas adaptações ao adolescente. Como objeto de transação com o meio, enquanto instrumento de mediação no processo de ajustamento social e de autonomização em relação aos pais, faz sentido que alguns comportamentos patológicos se organizem em torno do corpo adolescente. As dismorfofobias (preocupações obsessivas com o corpo, que facilitam distorções da imagem corporal) são frequentes e até normativas, desde que transitórias e não prejudiquem substancialmente o funcionamento do adolescente. No entanto, alguns comportamentos poderão fixar-se e tornar-se patológicos, invadindo e transtornando o quotidiano. Podem girar em torno dos alimentos, das refeições e da atividade física e absorvem a disponibilidade do jovem. 

Num cenário relacional e genético propício, o jovem confrontado com dificuldades difíceis de transpor poderá desenvolver uma Perturbação do Comportamento Alimentar (PCA). São os casos da Anorexia Nervosa (AN) e da Bulimia Nervosa (BN), entre outras. Tratam-se de perturbações psiquiátricas relativamente frequentes na adolescência e particularmente prevalentes nas sociedades que tendem a sobrevalorizar o culto do corpo. Caracterizam-se fundamentalmente pela motivação obsessiva para perder peso ou ganhar peso e investem-se dum leque de estratégias direcionadas a tal objetivo. Poderão acompanhar-se por um rol de manifestações físicas e psicológicas, que importa identificar: estados depressivos e ansiosos, pensamentos obsessivos relacionados com a imagem corporal, sintomas associados aos diferentes aparelhos e sistemas com queixas de âmbito digestivo, cardiovascular, endocrinológico, dermatológico, cognitivo, etc. Na adolescência, as fronteiras entre AN e BN poderão ser mal definidas e não é rara a alternância entre ambas no mesmo jovem. 

A AN desenvolve-se habitualmente durante a adolescência, afirmando-se como a principal causa de perda de peso no género feminino e o principal motivo para admissão em internamento pedopsiquiátrico. Além da típica apresentação, haverá entre os rapazes uma percentagem considerável em que a temática se traduz na busca pelo corpo musculado, mais do que pelo corpo magro. A distorção da imagem corporal mantém uma permanente convicção de excesso de peso, agravada pela habitual ausência de crítica. Irredutíveis perante os argumentos angustiados de familiares e amigos, estes jovens doentes encerram-se e protegem os seus hábitos patológicos sob um manto de indiferença e superficialidade. A perda de peso abrupta e a carência nutricional em momentos críticos do desenvolvimento físico e psicológico podem determinar sequelas a médio e longo prazo. A mortalidade da AN é consideravelmente superior à da população geral, sendo inclusivamente das principais causas de morte nos adolescentes, tanto como consequência dos danos físicos (normalmente hidroeletrolíticos e cardiovasculares), quanto por consequência nem sempre pretendida de gestos suicidários. Todas estas noções tornam premente a avaliação imediata por equipa especializada e o internamento poderá ser equacionado, com vista à reabilitação nutricional, ao gradual restabelecimento da crítica e à corresponsabilização do doente e sua estrutura familiar. A angústia e a frustração são compreensíveis e o tratamento poderá revelar-se um processo lento e difícil, pautado por avanços e recuos. No entanto, importa perceber que elevados níveis de emoção expressa podem tornar a recuperação mais difícil. Assim, as famílias devem ser ajudadas a lidar com emoções negativas e atuar com compreensão, calma e assertividade. A renutrição adequada permitirá recuperação considerável da maior parte dos sintomas, permitindo igualmente melhorar a disponibilidade para as intervenções psicoterapêuticas. 

A idade de início da BN é sobreponível à da AN, mas o diagnóstico é habitualmente mais tardio, ocultado sobretudo pela manutenção do peso em parâmetros normais. Estima-se que cerca de 12% das adolescentes enfrentem pelo menos uma forma transitória de BN, sendo a prevalência no sexo masculino mais difícil de apurar. Revela-se pelos comportamentos de binge eating (episódios de ingestão de grandes quantidades de comida num curto intervalo de tempo), seguido de comportamentos de purga (vómitos, laxantes, etc), sensação de enfartamento e culpabilidade, podendo acompanhar-se de um leque variado de manifestações: sintomas emocionais, fadiga e queixas inespecíficas, irregularidades menstruais, queixas de âmbito neurológico, etc. Compreensivelmente, verifica-se um declínio substancial do funcionamento sociofamiliar e ocupacional. 

Não haverá chave para o sucesso que não pressuponha uma abordagem multidisciplinar, em estreita comunhão com a família e com o próprio adolescente. Especialidades e valências como a Pedopsiquiatria, a Pediatria, a Enfermagem, a Nutrição e a Psicologia são alguns dos intervenientes habituais. Será, igualmente, da maior pertinência incluir a escola nesta equação, promovendo uma atmosfera de consciencialização, que aborde ativamente e sem estigmatização este tema, possibilitando uma deteção atempada dos casos nos diferentes contextos de vida dos jovens. 


Vítor Ferreira Leite