"... para se desenvolver normalmente, a criança precisa de aderir a actividades cada vez mais complexas com um ou mais adultos que tenham uma relação emocional irracional com a criança. Alguém tem de amar essa criança. Isso é o número um. Em primeiro, no final e sempre."

Urie Bronfenbrenner

Todos reconhecem a influência das experiências precoces durante os primeiros anos de vida. A ausência de experiências ou relações sociais e emocionais adequadas condiciona alterações da arquitetura e estrutura cerebral e consequentemente da função cognitiva. Quanto mais pequena for a criança, mais importante o seu impacto, variável com a idade/ estádio de desenvolvimento - nos denominados períodos críticos.


O jogo, também adiante designado por brincar, é uma atividade natural da infância, com grande relevância em todo o processo educativo das crianças e nas áreas da intervenção precoce e educação especial. 

É também a expressão de estados intencionais, representações construídas a partir do que as crianças conhecem e continuamente apreendem em meio natural de vida. Consiste num conjunto de atividades espontâneas, sucedâneas e experimentais com objetos que captam a sua atenção e interesse. Pode envolver ou não cuidadores, pares, despoletar ou não afetos e sentimentos e ser ou não pretenso. 

O brincar pode ser considerado um domínio do desenvolvimento pelo seu papel estruturante, de exploração do meio, de interação com objetos, adultos e pares. O brinquedo é um instrumento de descoberta e exploração, ou seja, é um objeto de experiência. 

Dadas as interações entre o jogo e a linguagem, jogo e cognição, jogo e desenvolvimento socioemocional, o brinquedo e o jogo são facilitadores da motivação da criança e uma importante mais valia estratégica para implementar as relações sociais e interação nos vários contextos de vida da criança. 

Brincar é uma atividade estruturante e enriquecedora em cinco dos domínios do desenvolvimento psicomotor e cognitivo da criança: 
  • o desenvolvimento motor;
  • o desenvolvimento social;
  • o desenvolvimento cognitivo;
  • o comportamento adaptativo (IDEIA, 2004).
Podemos considerar, neste processo, duas vertentes: 
(a) jogo como atividade desenvolvimental;
(b) jogo como atividade para atingir outros objetivos e domínios, como já referido. 

Smilansky descreveu quatro tipos de jogo: 
  • Jogo funcional;
  • Jogo condicional;
  • Jogo com regras;
  • Jogo dramático. 

Jogo funcional

No jogo funcional, a criança participa em atividades sensoriomotoras utilizando as suas competências psicomotoras. Baseia-se na necessidade da criança em mover-se e conhecer as suas capacidades, aprimorá-las (por imitação e repetição) e identificar os seus limites. 



Jogo condicional

No segundo ano de vida, a criança move-se por todo o espaço disponível e ao seu alcance, explorando o que lhe é permitido. Aperfeiçoa as suas competências sensoriomotoras e inicia o seu próprio processo criativo que perdura, desde que implementado e estimulado, até à adultícia. 


Jogo com regras

A partir dos 4-5 anos de vida, inclui jogos de mesa e jogos lúdicos (físicos) que lhe vão permitir compreender e incutir a ideia de regra, aceitá-la e respeitá-la, brincando em consonância com estas. 


Jogo dramático

Descrito por Smilansky e Shefatya é o tipo de jogo mais elaborado. Está associado à compreensão do meio, à imitação, criatividade e influencia positivamente o futuro sucesso académico das crianças. 

Vale a pena debruçar-nos um pouco mais sobre este tipo de jogo, observável desde os três anos, composto por duas vertentes: a imitativa e a imaginativa ou criativa. Um exemplo da primeira pode observar-se quando a criança imita um adulto ou situação, num contexto real e inclui a recriação de ações e discurso do adulto, personificação de objeto (boneco) ou animal. Já o jogo imaginativo exige que a criança desenvolva e crie algo de diferente durante o processo de imitação. Devido à sua própria visão e interpretação do que vê, não é capaz de imitar na íntegra a pessoa ou situação, fazendo apelo à sua imaginação, preparando-se para a escola. 

Este mesmo autor estudou grupos de crianças oriundas de estratos socioeconómicos favorecidos e desfavorecidos (n= 36 crianças, das quais 18 provenientes de famílias da classe média e 18 de famílias socioeconomicamente desfavorecidas) e verificou que o primeiro grupo de crianças eram mais participativas, apresentavam linguagem mais desenvolvida e sofisticada, com frases mais extensas, expressões mais ricas, maior percentagem de nomes, pronomes, verbos, advérbios e vocabulário mais variado, comparativamente ao outro grupo de crianças.


Smilansky observou ainda que aos três anos, o segundo grupo não tinha competências de jogo sociodramático e que existiam ainda diferenças culturais entre crianças oriundas de famílias africanas e do médio oriente, comparativamente às europeias. Ou seja, se esta realidade for transportável para Portugal, com uma sociedade multicultural, onde abundam crianças de famílias africanas e de programas europeus de deslocalização, certamente o jogo sociodramático terá um impacto positivo e de inegável valor na preparação de todas as crianças para a escola.

Em síntese, o jogo sociodramático, bem como o jogo funcional, jogo condicional  jogo com regras são componentes chave para o sucesso académico, porque incluem regras e expetativas que as crianças vão assimilando ao longo do seu desenvolvimento. Estes tipos de jogo e brincar podem ser observados, quer quando a criança brinca sozinha, quer quando incluída num grupo de pares ou no jogo sociodramático, sendo que só neste último são integradas simultaneamente as competências sensoriomotoras, jogo funcional e com regras. 

A National Association for the Education of Young Children (NAEYC, 2009), em 2009 aprovou um documento intitulado "Position Statement on Developmentally Appropriate Practice, NAEYC - Key Messages of the Position Statement", em que afirma e passamos a citar: "... o brincar promove competências chave para o sucesso da aprendizagem. No jogo dramático de nível superior, os papéis colaborativos, cenários e controle dos impulsos, necessários às limitações da actividade, desenvolvem a capacidade de auto-regulação, pensamento simbólico, crítico, memória e linguagem, fundamentais à aprendizagem, sociabilidade e sucesso escolar...".

Daí a importância dos docentes providenciarem e implementarem oportunidades de jogo/ brincar sociodramático (teatro, role-play), que podem ainda sustentar e desencadear oportunidades de aprendizagem (académicas ou de aquisição de comportamentos e conceitos morais), diversificação de áreas, tópicos ou focos de interesse. 

Acresce ainda a importância da investigação no ensino de atividades de jogo e brincar em crianças com autismo, em que se verificou a aquisição de competências noutros domínios (social, linguagem). 

Outros estudos focaram-se no momento do jogo simbólico, imitação, verbalização e jogo cooperativo. 

Nem todas as crianças em geral ou com problemas de neurodesenvolvimento, como o autismo, respondem positivamente ao mesmo tipo de intervenção. São sempre necessários programas individualizados de intervenção, que devem sempre ter em conta a idade de desenvolvimento mental da criança, a linguagem recetiva, a idade cronológica, as áreas fortes e as áreas fracas de competências. 



Conclusões:
  • O jogo é um dos domínios do desenvolvimento, através do qual se pode motivar a criança para a aprendizagem e implementar a criatividade;
  • O jogo é um suporte ao desenvolvimento de áreas como a cognição, linguagem, comunicação e desenvolvimento social;
  • O jogo é um importante instrumento para identificar a existência de atraso ou dificuldades no brincar/ jogo nas crianças.


Recomendações:
  • Implementar e dar suporte ao desenvolvimento das atividades lúdicas;
  • Utilizar os contextos naturais para os propósitos do jogo;
  • Monitorizar os ganhos/ progressos no jogo e repercussão noutras áreas;
  • Atenção à tensão entre o tempo de brincar e o das atividades pré-académicas (tempo de brincar é tempo de qualidade para aprender!).


"One of the most powerful ways to change the world is to make it better for Kids."

(Jack P. Shonkoff - Professor de Saúde Infantil e Desenvolvimento da Universidade de Harvard)




Maria do Carmo Vale