Até onde vai o meu direito de expor a minha filha nas redes sociais?

A M. é linda! Sorri muito, é muito atenta, conhece o biberão a léguas, faz boquinhas e carinhas que é impossível não amar, tem um par de olhos azul-mar intenso, imenso, e apesar dos seus singelos quatro meses (cerca de dois de idade corrigida, pois nasceu prematura), até acho que já se faz à foto. Ou não, e é a foto que se faz a ela, tal é o meu vício de a fotografar e filmar em todas as circustâncias e mais algumas. A M., a minha M., é linda. Foi uma bebé muito desejada, nasceu cedo demais, tem uma história muito maior do que o seu tamanho, peso ou idade e eu - mãe babada me confesso! - quero mostrá-la ao mundo. Não a todo o mundo. Apenas às pessoas do meu mundo, o real e o digital (que hoje se confundem mais do que nunca). A questão é se o devo fazer.

Terei eu, como mãe, o direito e a legitimidade de expor a minha filha, a sua história, as etapas do seu desenvolvimento, as suas primeiras gracinhas, os seus primeiros fracassos, as suas dificuldades e trapalhadas, como se de propriedade minha se tratasse, nas redes sociais? 


Não, não tenho. Mas à semelhança de milhares de mães, faço-o. Por imperativos profissionais e académicos, as redes sociais são quase o meu habitat natural. Sou o que se pode considerar uma nativa digital, ainda que pertença a uma geração pré-internet. As redes sociais não são espaços estranhos nem para mim, nem para o Pai da M., que também se move profissionalmente na área da comunicação e do audiovisual. Mas no que toca a "filhos nas redes sociais", temos posições distintas. A dele é racional. A correta.


Por ele, a M. não teria qualquer foto dela a navegar nesse mar sombrio que é a internet, onde a privacidade é um conceito meramente ilusório. Nem mesmo as que publico, tendo sempre o cuidado de não lhe mostrar o rosto ou de a colocar em qualquer situação que mais tarde lhe possa causar embaraço ou ser prejudicial sob o ponto de vista profissional. Tenho feito, até aqui, o que considero ser uma exposição "controlada", ainda que não tenha quaisquer ilusões em relação À segurança das restrições de privacidade. É que uma vez online, para sempre online e o simples facto de se partilhar algo - como partilhamos nas redes sociais - faz cair por terra o conceito de privacidade. Nada do que se partilha pode ser considerado privado, pois o próprio ato de partilhar tem na sua essência a vontade de tornar público algo.



No radar da criminalidade


São inúmeras as dimensões em que a presença nas redes sociais pode impactar a vida de uma criança e acompanham o seu desenvolvimento, desde o nascimento à idade adulta. As questões de segurança são transversais a todas as idades. Se mal gerida, esta participação ativa e a exposição da criança/ adolescente em plataformas como o Facebook, Instagram ou outras redes sociais online, pode abrir caminho situações inesperadas como raptos, reprodução das fotos da criança em redes de pedofilia, situações de cyberbullying entre adolescentes e tantas outras práticas.


Ainda que em Portugal a ocorrência de raptos não atinja (felizmente) os índices registados noutros países, a PSP continua a desaconselhar na sua página oficial de Facebook que os pais partilhem fotos ou vídeos dos seus filhos nas redes sociais, que identifiquem os locais que habitualmente frequentam ou as fardas do colégio onde andam. A internet pode eternizar as publicações e as suas ferramentas de propagação e viralidade tornam impossível de prever o impacto que a simples partilha de uma foto inofensiva, o relato de um diálogo entre pai e filho ou o vídeo das últimas férias onde a criança aparece a mostrar os seus (poucos) dotes vocais, podem ter ao nível da sua autoestima, num futuro a médio prazo. É que bastará uma simples pesquisa para que a criança de hoje, adolescente de amanhã, possa aceder a todas as partilhas realizadas pelos seus pais ao longo dos anos e que a colocam como protagonista principal. 


E não se pense que nada poderá fazer contra os seus progenitores, caso se sinta lesada com o grau de exposição digital da sua intimidade. Em 2016, o mundo assistiu a um processo pioneiro neste âmbito. Ao atingir os 18 anos, uma jovem austríaca, processou os pais por publicarem no Facebook fotos da sua infância que considera violarem a sua privacidade. A jovem alegou que os pais "não tiveram vergonha, nem limites, e não quiseram saber se nas fotos estava sentada na sanita ou deitada nua no berço."

Em Portugal, não se conhecem até à data processos semelhantes, mas contam-se decisões judiciais em que os pais (num processo de divórcio) são impedidos pelo tribunal de partilharem nas redes sociais fotografias dos seus filhos menores. Num acórdão de Julho de 2015, os juízes Bernardo Domingos, Silva Rato e Assunção Raimundo consideraram que "os filhos não são coisas ou objetos pertencentes aos pais e de que eles podem dispor a seu belo prazer. São pessoas e, consequentemente, titulares de direitos", entendendo assim impor ao casal a obrigatoriedade de não divulgar fotografias ou informações da filha nas plataformas sociais. No acórdão, os juízes reconhecem ainda a existência de um "perigo sério e rela" de a exposição das crianças nas redes sociais, as colocar no radar de potenciais predadores sexuais.


O peso da pegada digital

É óbvio que este controlo de exposição e potenciais danos é muito mais fácil quando falamos de crianças do que de adolescentes. No primeiro caso, basta que os pais utilizem a maturidade que a vivência lhes conferiu para ponderar as partilhas realizadas. No segundo, é tudo mais complexo já que é muitas vezes necessário lidar com um adolescente à procura de afirmação entre os seus pares, a seguir tendências em massa e, não raras vezes, sem noção dos riscos decorrentes da sua exposição online. Além de todas as questões já elencadas relativas à segurança, a generalidade dos jovens ignora por completo o impacto que aquela foto em bikini nas últimas férias de verão, aquele vídeo onde são perceptíveis os efeitos de uns copos a mais na festa da amiga, ou aquele comentário em linguagem menos própria, poderão ter na altura de encontrar emprego. Não há hoje empresa que não pesquise e avalie, exaustivamente, a pegada digital dos candidatos antes de os contratar. A maioria dos recrutamentos faz-se online, na rede, e o BI digital de um candidato nunca foi tão importante.


Cabe aos pais sensibilizar os jovens para todas estas questões. Mas, para isso, é necessário que os filhos reconheçam aos pais legitimidade para o fazer. É necessário que se revejam no exemplo. De nada me vale questionar o meu filho adolescente sobre a última partilha que fez no Facebook, onde surge semi-nu, se eu próprio partilhei "ene" fotos dele nos mesmos moldes ao longo dos anos. De nada me serve questionar o meu filho sobre o facto de partilhar nas redes sociais as suas rotinas diárias e os locais que frequenta se, como mãe, essa também é a minha prática. 

Na rede nada é privado, mesmo que restrinja o alcance das suas publicações ao seu grupo de amigos mais chegado. Mas se, apesar desta consciência, é dos que como eu não consegue resistir ao impulso de partilhar orgulhosamente o melhor do seu rebento online, siga a regra do bom-senso (que continua a ser mais válida do que qualquer legislação). Antes de clicar "partilhar", lembre-se sempre que a sua primeira obrigação é proteger o seu filho, garantindo a sua segurança online e respeitando sempre a sua privacidade e dignidade enquanto ser humano. 

A mãe promete, M., que nunca te dará razões para que te envergonhes de nada que seja escrito ou partilhado sobre ti.



Cátia Mateus

Imagens retiradas do banco público de imagens Pixabay